ESTÉTICA, AGRICULTURA E GÊNERO: A VISUALIDADE NAS MUDANÇAS DO MODELO AGROALIMENTAR APÓS A REVOLUÇÃO VERDE .

Ensayo ganador del Concurso "Alimentos y pensamiento, siempre en agenda" 2016 Instituto para el Desarrollo Rural de Sudamérica IDPRS

Por Paisa Cósmica - Colectivo Agrario Abya Yala 

“O essencial é invisível aos olhos.” Antoine de Saint-Exúpery. Descarga el documento completo

 As mulheres e as sementes teceram uma relação co-evolutiva desde os alvores da história humana, quando a curiosidade e a resolução femininas, propiciaram a epifania da planta que germina no caroço dentro do fruto, sua diversificação pelo processo de domesticação, e sua incorporação na identidade cultural dos povos no calor do fogão. Conforme Shiva (1988, 1992) esta relação se estende ao solo vivo, e é sacralizada na maioria das culturas sob a figura da terra mater, pacha mama, a qual entende que mulher, semente e solo, contêm o milagre da regeneração: a capacidade de gestar uma nova vida e canalizar os fluxos energéticos do ecossistema em favor dela, harmonizando estes princípios femininos com os princípios masculinos do sol, solis pater, taita inti. 

Porém, a lógica da modernidade profanou o mito da mãe terra, construindo representações da natureza como utopia negativa, como objeto, inerte, alheio e terrível – terra nullius–, que deve ser dominado pela ação tecnocientífica (SHIVA, 1988, 1992; ESCOBAR, 2007; LEFEBVRE, 2013). As consequências deste processo de ruptura ainda permeiam as sociedades contemporâneas, embora tenham sido camufladas em formas pretensamente naturais, através de discursos, representações e práticas espaciais que repercutem em todas as dimensões e escalas do território, e que por tanto o configuram, partindo do próprio corpo até chegar no globo terráqueo como um todo (idem). 

Quer se aprofundar numa das múltiplas arestas dessa clivagem (homem/mulher, civilização/natureza), a saber, a maneira em que os discursos e representações produzidos pela lógica moderna/patriarcal/capitalista são reproduzidos na cotidianidade das práticas agroalimentares numa região do sul global, a estética1 associada a essa ordem e sua relação com o papel da mulher na divisão do trabalho agrícola. Nesse contexto, identifica-se a Revolução Verde como um instrumento crucial na construção dodiscurso desenvolventista, que erigiu a modernização tecnológica como paradigma da produção alimentar, desviando a atenção da dimensão política da questão agrária, e desconsiderando as particularidades sociais, culturais e ecossistêmicas.

O prato e a colher contêm a ordem mundial toda, porém, por causa da intimidade no ato de se alimentar, é difícil enxergar as contradições que desabrocham em cada elo da cadeia, especialmente porque elas são apagadas nas alocuções oficiais. Este fato traz desafios metodológicos na abordagem crítica do assunto, entre os quais a necessidade de procurar além do texto escrito, desconfiar das palavras, uma vez que a elas foi dada uma função específica na preservação do status quo – como linguagem histórica das classes eruditas/dominantes–, tendo, por esse motivo, a capacidade de encobrir as relações de dominação subjacentes, em vez de designá-las para fazê-las evidentes (RIVERA CUSICANQUI, 2010). 

E ainda, reconhecendo que sempre há uma estética atrelada à ordem social, e que esta é ao mesmo tempo um sintoma das práticas sociais vigentes e uma força para mudálas num sentido específico (LEFEBVRE, 2013), quer se esmigalhar o código que regra o jeito certo/errado de se trabalhar a terra e consumir seus frutos, e como isto se manifesta na organização do espaço agrário (os cultivos e as variedades que se promovem, a matriz tecnológica utilizada, a divisão do trabalho no bojo da produção, etc.). Lefebvre enfatiza no protagonismo do visual na constituição do pensamento moderno, que se abstrai dos cheiros, dos sabores e do toque (espaço absoluto), em virtude de um modelo, de uma sociedade imaginária (espaço abstrato).

Deste modo, propõe-se a abordagem do problema a partir da visualidade2 , devido à importância da dimensão ótica e estética na institucionalização de uma representação dicotômica da realidade agroalimentar nos países do denominado terceiro mundo, na qual a agricultura camponesa e a alimentação tradicional são sinônimo de atraso e pobreza, enquanto as tecnologias da Revolução Verde se consagram como promessa da prosperidade e o progresso. Esta mudança na percepção e na forma de se cultivar os alimentos teve repercussões profundas, entre as quais se destaca a perda do histórico protagonismo da mulher na agricultura e o empobrecimento da dieta, pela homogeneização das variedades comercializadas. 

Os ditos processos de homogeneização prescreveram uma estética da agricultura e a alimentação, por meio dos discursos da eficiência, da estandardização das formas e dimensões aceitáveis para frutas e verduras, as regulamentações sanitárias e fitossanitárias, e demais disposições que configuraram o atual mercado alimentar. Isto se relaciona com as construções culturais do gênero3 , que se fundamentam numa imagem caracterizada pela objetivação do corpo feminino, sob padrões estéticos que terminam sendo uma fonte decisiva de opressão patriarcal, relegando às mulheres ao rol passivo da visualidade, inofensivas e fracas, privadas de seu enorme potencial revolucionário (CHOW, 1992). Porém, este processo de homogeneização não é uniforme, bem pelo contrário, há uma organização espacial concretizada na divisão social do trabalho na escala planetária, que determina a participação de cada região no mercado mundial, e inclusive de cada um dos países que a compõem, fato que obedece às particularidades locais e às próprias necessidades do capital. A discussão se apresenta a partir de dois casos contrastantes: a produção mecanizada de grãos – soja e milho– no Brasil, e a floricultura na Colômbia, por considerá-los expressivos da tese aqui defendida, embora não sejam exaustivos.

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